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"Lembram-se – já vai sendo difícil recordar – de como as coisas eram antes da guerra? As meias baratas que comprávamos e deitávamos fora para poupar o trabalho do conserto? Os carros de que nos desfazíamos todos os anos para andarmos na última moda de design do motor e de desenho aerodinâmico? O pão e ossos e pedaços de gordura que enchiam os caixotes do lixo – não só dos ricos, também dos pobres? As garrafas vazias que até o homem do lixo se recusava a levar, porque os fabricantes achavam mais barato fazer novas que lavar as velhas? As montanhas de latas vazias que ninguém achava que valesse a pena aproveitar, enferrujando e cheirando mal nos monturos de lixo? A comida que era queimada ou enterrada, porque não compensava distribuí-la? A terra sufocada e empobrecida com cardos, porque não compensava pagar para cultivá-la? Os lenços de tecido usados para trapos de pintura e pegas de cafeteira? As luzes eléctricas deixadas acesas, porque dava muito trabalho apagá-las? As ervilhas frescas que deixávamos de debulhar e trocávamos por qualquer coisa em lata? O papel que obstruía as prateleiras, jazia nos parques pelo joelho e enchia os assentos dos comboios? Os ganchos de cabelo espalhados e louça em cacos, os pequenos enfeites de aço, madeira, borracha, vidro e lata que comprámos, para preencher meia hora livre na loja da moda e que logo esquecemos? Os anúncios implorando, exortando, lisonjeando, ameaçando e obrigando a saciar-nos com coisas que não queríamos, em nome da mania das grandezas, da ociosidade e do “sex appeal”? E a feroz escalada internacional para encontrar em nações indefesas e atrasadas um mercado onde podíamos despejar todo o lixo supérfluo que as máquinas inexoráveis produziam hora a hora, para criar dinheiro e emprego?"
4 comentários:
Este texto não pode ser mais actual. Infelizmente, sobretudo para os mais novos, vai ser uma realidade.
Mais uma vez, muito obrigada pela partilha
Tenho muito receio e estou preocupada sobretudo com a geração mais nova. Assusta-me pensar nos nossos filhos e netos se ou quando tiverem de ser privados de coisas às quais estão habituados. Gostaria que isto não viesse a acontecer. Mas vejo isto tâo mal...
Impressionante. Acho que vou partilhar. Posso?
Mas se o anunciado futuro difícil servir para nos livrarmos de hábitos como estes, menos mal. Espero que sim. Aprende-se muito mais com as privações do que com a abundância. Mas custa, custa muito, claro.
Claro, Raquel! É um excerto de uma texto mais longo que tenho andado a traduzir.
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