Durante um mês da minha vida, um mês muito duro, eu fui conhecida não pelo meu nome, mas pela 34.
Isto aconteceu em 1974, entre Novembro e Dezembro, e eu estava internada na cama número 34, na Maternidade de Santa Bárbara, em Lisboa, com ameaça de aborto.
As condições eram deprimentes: uma área enorme, dividida por pequenos tabiques para 8 mulheres cada, recebia cerca de 40 mulheres. Os colchões eram feitos de raspas de cortiça e a casa de banho tinha um grande buraco no tecto, onde entrava o frio daquele inverno.
Todas as mulheres tinham abortado ou estavam em vias de abortar. Muitas, porque tinham feito um aborto no exterior, vinham tratar as sequelas. Outras faziam tudo por tudo para manterem os seus bebés vivos.
Por ser um lugar de abortos, não havia visitas nos 5 primeiros dias, e depois disso, só para quem pudesse ir à sala respectiva. Assim, era da janela que pedíamos aos maridos que trouxessem uns chinelos, um roupão, umas cuecas.
Ali tive uma boa escola do que é realmente o mundo das mulheres. Lembro-me de uma rapariga que tinha feito um aborto: tinham-lhe abortado um bebé, mas ela estava grávida de gémeos e um deles sobrevivia ainda. Em Santa Bárbara, faziam tudo para salvar os bebés. Assim, ela assinou a alta, saiu, abortou o segundo bebé e voltou para tratar as sequelas.
Uma outra rapariga, grávida de cinco meses, perdeu a bebé praticamente à nossa frente.
Interessante foi que nunca vi nem médicos, nem enfermeiras, nem outro pessoal tratar menos bem quem tivesse (ou não) provocado o seu próprio aborto.
A maior parte das mulheres estava lá 3 ou 4 dias e ia-se embora já recuperada. Mas os casos como o meu em que, ou continuava a ameaça de aborto, ou se tratava de uma coisa mais complicada, iam ficando.
Eu, descobriu-se depois, tinha uma mola hidatiforme. Corria a versão que era um bicho que quando nascia, subia pelas paredes.
Quem ia subindo pelas paredes fui eu, quando finalmente decidiram fazer-me expulsar a dita mola. Não tanto pelas dores, que as tive e muitas quando acordei a meio da anestesia geral, mas pela fraqueza geral em que fiquei.
Fizeram-me a curetagem na Magalhães Coutinho e foi aí, na sala de recuperação, que uma rapariga abortou espontaneamente um feto de 3 meses. A enfermeira pegou nele numa gaze e andou a mostrar-nos às outras internadas: um bebé minúsculo, mas completo, com um rostinho perfeito, dedos nas mãos e pés, um rapazinho.
Voltei para casa no dia 19 de Dezembro, e já nem entendia tudo o que a minha filha R. dizia, tanto que ela se desenvolveu num mês, mês esse em que tinha completado 2 anos de vida.
Foi uma experiência terrível, mas que jamais esquecerei.
8 comentários:
Impressionante
:(
Nesta mensagem estou contigo, avó! Também eu passei (infelizmente) por essa experiência... pensei que nunca poderia ter filhos! Felizmente tive, depois, 3 filhos lindos e saudáveis! Mas isso não altera a minha posição. Como já disse e repito o nosso voto NÂO vai parar esse flagelo. Se fosse estaria contigo. A questão é outra...
Ainda dizem que Portugal não evoluiu...é lento, mas da tua geração para a minha a diferença é muito grande.
Terrível, mesmo...
Tomei a liberdade de ler alguns posts anteriores e...adorei!
Vou voltar ;)
Beijo
3 meses? entre 10 e 14 semanas portanto...Estás a fazer um bom trabalho aqui no teu blog. Força.
as boas castas têm de sofrer os rigores do tempo, não é?
Bolas! Foi valente!
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